sexta-feira, 12 de junho de 2020

Capitão do Coração


Creio que falar os efeitos das músicas sobre o humor e a imaginação das pessoas é chover no molhado mas me acompanhe por um minuto. 

Para mim, algumas músicas têm um poder de ambientação tão forte que elas meio que me levam para uma realidade paralela. 

Algumas vezes é só um sentimento, meio vago, aquela coisa de sentir saudades de um tempo que você não viveu. 

Outras vezes é um negócio tão claro que eu consigo visualizar a cena, sentir os cheiros, sentir a temperatura, e sentir o que a minha versão nessa realidade paralela está vivendo. 

A música The Captain of Her Heart (Double) é uma do segundo tipo. 


Nostálgica, fria, lenta. A letra não é muito importante aqui, mas a ambientação. 

É uma balada bem anos 80, época em que ela foi lançada. 

Mas ela me leva a algum tempo depois. O início dos 90. 

Para quem não sabe, eu meio que nasci nos anos 90, então eu era uma criança. Mas nessa realidade paralela eu já tenho vinte e poucos. 

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São Caetano do Sul. Uma noite qualquer de inverno em 1992. 

É noite. Deve ser um tanto tarde, talvez umas 23h00 mais ou menos. 

Faz um frio tão desgraçado que as pessoas estão preferindo ficar em casa. 

Nem a Avenida Goiás, que comporta grande parte da vida noturna da cidade, parece ter escapado desse efeito. 

Está tudo deserto. 

Andamos pelo centro da cidade, meu primo Max e eu. 
  
Encolhidos em nossas jaquetas de couro, passamos pelos pequenos desertos gelados que se tornaram as ruas dessa cidade. 

As lojas já estão fechadas, mas os letreiros iluminados pelo gás neon continuam ligados. Isso confere uma familiar iluminação rosa e azul a alguns pontos da avenida. 

Mas, na sua maioria, a iluminação é simples e soturna, com as lâmpadas amarelas dos postes iluminando estritamente o suficiente. 

Não conversamos. Apenas curtimos a companhia um do outro.

E andamos. 

Nós resolvemos visitar o shopping. 

Ele já deveria estar fechado, mas como tem uma sessão de cinema acontecendo, acabou ficando aberto além do horário costumeiro. 

Caminhamos pelo shopping. As lojas estão fechadas, o que não é uma grande surpresa. No primeiro andar não tem nada de muito interessante. 

No segundo andar, o fliperama. Deve ter fechado há pouco tempo, já que o cheiro de cigarro ainda paira sobre o ar. 
A visão das máquinas desligadas e o silêncio dão uma visão de contraste. O lugar costuma ser sempre colorido e barulhento. 

O terceiro andar. Aqui só tem o cinema. O cheiro de cigarro fica mais ameno. Aqui o que predomina é o de pipoca. 

Resolvemos subir no terraço do shopping. Pelas escadas de emergência. 



Alguns avisos dizem que é proibido. Mas não tem nenhum guarda, nenhuma câmera. Não vai acontecer nada. 

Chegamos ao terraço. 

Não tem nada demais aqui. Um extenso chão de cimento, paredes altas. Aqui em cima parece que é mais frio do que lá embaixo. 

Meu primo me oferece um cigarro. 

Nós não trocamos muitas palavras. 
Não fazemos nada demais. 
Nós nos conhecemos. 
Caminhamos. Curtimos. 
Cometemos um ato inocente de rebeldia. 

Essa é a nossa diversão. 

Não precisamos de muito.

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